sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

a hora da estrela

"Quanto à moça, ela vive num limbo impessoal, sem alcançar o pior nem o melhor. Ela somente vive, inspirando e expirando, inspirando e expirando. Na verdade — para que mais que isso? Seu viver é ralo. (...) Para adormecer nas frígidas noites de inverno enroscava-se em si mesma, recebendo-se e dando-se o próprio parco calor. Dormia de boca aberta por causa do nariz entupido, dormia exausta, dormia até o nunca."

_clarice lispector

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

"O senhor… mire, veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam, verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso que me alegra montão."

_joão guimarães rosa


[...]'Meu coração vai batendo devagar como uma borboleta suja sobre este jardim de trapos esgarçados em cujas malhas se prendem e se perdem os restos coloridos da vida que leva. Vida? Buenas, seja lá o que for isto que temos.'

_caio f. abreu

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

'(...)Claro que você não tem culpa, coração, caímos exatamente na mesma ratoeira, a única diferença é que você pensa que pode escapar, e eu quero chafurdar na dor deste ferro enfiado fundo na minha garganta seca que só umedece com vodka, me passa o cigarro, não, não estou desesperada, não mais do que sempre estive, nothing special, baby, não estou louca nem bêbada, estou é lúcida pra caralho e sei claramente que não tenho nenhuma saída, ah não se preocupe, meu bem, depois que você sair tomo banho frio, leite quente com mel de eucalipto, gin-seng e lexotan,depois deito, depois durmo, depois acordo e passo uma semana a ban-chá e arroz integral, absolutamente santa, absolutamente pura, absolutamente limpa, depois tomo outro porre, cheiro cinco gramas, bato o carro numa esquina ou ligo para o CVV às quatro da madrugada e alugo a cabeça dum panaca qualquer choramingando coisas do tipo preciso-tanto-de-uma-razão-para-viver-e-sei-que-esta-razão-só-está-dentro-de-mim-bababá-bababá, até o sol pintar atrás daqueles edifícios, não vou tomar nenhuma medida drástica, a não ser continuar, tem coisa mais destrutiva que insistir sem fé nenhuma?'

_caio f.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

[...]

'Talvez um voltasse, talvez o outro fosse. Talvez um viajasse, talvez outro fugisse. Talvez trocassem cartas, telefonemas noturnos, dominicais, cristais e contas por sedex (...) talvez ficassem curados, ao mesmo tempo ou não. Talvez algum partisse, outro ficasse. Talvez um perdesse peso, o outro ficasse cego. Talvez não se vissem nunca mais, com olhos daqui pelo menos, talvez enlouquecessem de amor e mudassem um para a cidade do outro, ou viajassem junto para Paris (...) talvez um se matasse, o outro negativasse. Seqüestrados por um OVNI, mortos por bala perdida, quem sabe. Talvez tudo, talvez nada.'

Caio F.

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

'Todo pássaro que aprendeu a esgravetar uma boa porção de vermes sem ser compelido a voar ficará para sempre na terra. Algo de análogo passa com os seres humanos. Se o pão lhes é oferecido regular e copiosamente três vezes ao dia, muitos deles contentar-se-ão perfeitamente vivendo apenas de pão - ou pelo menos, de pão e de espetáculos de circo.'

_Aldous Huxley

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

sugestões para presente:

Amor. Bolinhas de sabão. O som de copos com água. O som das gotas no chão. Um sorriso tímido. A música por trás dos ruídos. Um coração encostado no outro. Um ou dois para sempres. Um avião nas mãos de um menino. Um barquinho de papel. Uma pipa atravessando as nuvens. Uma sementeira de tulipas. Um mingauzinho de aveia. Um par de meias listradas. Dois ou três cata-ventos. Uma palavra inventada.

_rita apoena

domingo, 22 de novembro de 2009

lady macbeth

"Queres ter aquilo que, por tua estimativa, é o adorno da vida e, no apreço que tens de ti mesmo, levas a vida como um covarde, não é assim? Deixas que o teu 'Não me atrevo' fique adiando tua ação até que o teu 'Eu quero' aconteça por milagre; como a gata, coitadinha, que queria comer o peixe mas não queria molhar a pata."

_william shakespeare in 'Macbeth'

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Tomara.

tomara que você me encontrasse
flecha no peito
ar de herói abatido
sangrando muito
& moribundo

como não dá
a pontaria piorou
as armas evoluíram
ninguém mais dá flechadas
& pra falar a verdade
você bem sabe
eu
super-herói qualquer
sou vulnerável

faço cara
de quem comeu e não gostou
no fundo
adorei
& só de dizer tudo isso
já sinto me voltar teu apetite
querendo tudo de novo.

_leminski

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

fluxofloema

'...era bonito cantar, trovar, mas bem que diziam:
tempo não é, senhores, de inocência, nem de
ternuras vãs, nem de cantigas, diziam e eu não
sabia que a coisa ia ser comigo, entendes? E o
mundo parecia cheio de graça [...] mas o tempo
não está para graças...'

_hilda hilst

guru.

'Frágil – você tem tanta vontade de chorar, tanta vontade de ir embora. Para que o protejam, para que sintam falta. Tanta vontade de viajar para bem longe, romper todos os laços, sem deixar endereço. Um dia mandará um cartão-postal de algum lugar improvável. Bali, Madagascar, Sumatra. Escreverá: penso em você. Deve ser bonito, mesmo melancólico, alguém que se foi pensar em você num lugar improvável como esse. Você se comove com o que não acontece, você sente frio e medo. Parado atrás da vidraça, olhando a chuva que, aos poucos começa a passar.'

_caio f. abreu

sábado, 31 de outubro de 2009

'Tenhamos um mundo de homens e mulheres com dínamos entre as pernas, um mundo de fúria natural, de paixão, ação, drama, sonhos, loucura, um mundo que produza extâse e não peidos secos. Creio hoje mais do que nunca é preciso procurar um livro ainda que de uma só grande página: precisamos procurar fragmentos, lascas, unhas dos dedos dos pés, tudo quanto contenha minério, tudo quanto seja capaz de ressuscitar o corpo e a alma.'

_henry miller

sábado, 24 de outubro de 2009

"E, nesse mundo, ninguém precisa trocar amor por coisa alguma, porque ele brota sozinho entre os dedos da mão, e se alimenta do respirar, do contemplar o céu, do fechar os olhos na ventania e abrir os braços antes da chuva. Mesmo quando o outro vai embora, a gente não vai. A gente fica e faz um jardim, um banquinho cheio de almofadas coloridas e pede aos passarinhos não sujarem ali, porque aquele é o banquinho do nosso amor, do nosso grande amigo. Para que ele saiba que em qualquer tempo, em qualquer lugar, daqui a quantos anos, não sei, ele pode simplesmente voltar, sem mais explicações, para olhar o céu de mãos dadas. Eu não quero passar a minha existência pulando de pedra em pedra, tomando atalhos de relações humanas. Eu vou mergulhar com o meu amigo, ainda que eu tenha de ficar em silêncio."

_rita apoena


domingo, 18 de outubro de 2009

cartas de um sedutor

'era telúrico e único. sonhava. sonhava adeuses e sombras. sonhava deuses. era cruel porque desde sempre foi desesperado. encontrou um homem-anjo. para que vivessem juntos, na Terra, para sempre, cortou-lhe as asas. o outro matou-se, mergulhando nas águas. eu vivo até hoje. estou velho. às noites bebo muito e olho as estrelas. muitas vezes, escrevo. aí repenso aquele, o hálito de neve, a desesperança. deito-me. austero, sonho que semeio favas negras e asas sobre uma terra escura, às vezes madrepérola.'

_hilda hilst

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

feliz ano velho

"Não falamos de amor. É porque é difícil acreditar que eu tenha realmente amado aos dezenove anos de idade. Mas não sei, pra mim amor é aquela relação doida que se vê em filme americano da década de cinquenta. Ou não: pode ser a sensação gostosa que eu sentia quando estava com ela.'

_marcelo rubens paiva

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

lavoura arcaica

"Os olhos no teto, a nudez dentro do quarto; róseo, azul ou violáceo, o quarto é inviolável; o quarto é individual, é um mundo, quarto catedral, onde, nos intervalos da angústia, se colhe, de um áspero caule, na palma da mão, a rosa branca do desespero, pois entre os objetos que o quarto consagra estão primeiro os objetos do corpo; eu estava deitado no assoalho do meu quarto, numa velha pensão interiorana, quando meu irmão chegou pra me levar de volta; minha mão, pouco antes dinâmica e em dura disciplina, percorria vagarosa a pele molhada do meu corpo, as pontas dos meus dedos tocavam cheias de veneno a penugem incipiente do meu peito ainda quente; minha cabeça rolava entorpecida enquanto meus cabelos se deslocavam em grossas ondas sobre a curva úmida da fronte; deitei uma das faces contra o chão, mas meus olhos pouco apreenderam, sequer perderam a imobilidade ante o vôo fugaz dos cílios; o ruído das batidas na porta vinha macio, aconchegava-se despojado de sentido, o floco de paina insinuava-se entre as curvas sinuosas da orelha onde por instantes adormecia; e o ruído se repetindo, sempre macio e manso, não me perturbava a doce embriaguez, nem minha sonolência, nem o disperso e esparso torvelinho sem acolhimento; (...)"

_raduan nassar

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

terror & êxtase

"Nunca senti tanta pena de um homem, pela primeira vez senti tesão misturado com piedade, ele era lindo que nem... que nem o gatinho com a pata quebrada debaixo da chuva que achei aquela noite em Ipanema e levei no colo, e depois ficamos sentados debaixo da marquise, e ele miava e eu ninava assim: 'Você marcou bobeira xará, com tanta gente nesta puta cidade, foi cair logo nas mãos de uma gatinha de pata quebrada debaixo da chuva, igualzinha a você.' "


_josé carlos oliveira

sábado, 3 de outubro de 2009

Heloísa

"Somos uns animais diferentes dos outros, provavelmente inferiores aos outros, duma sensibilidade excessiva, duma vaidade imensa que nos afasta dos que não são doentes como nós. Mesmo os que são doentes, os degenerados que escrevem história fiada, nem sempre nos inspiram simpatia: é necessário que a doença que nos ataca atinja outros com igual intensidade para que vejamos nele um irmão e lhe mostremos as nossas chagas, isto é, os nossos manuscritos, as nossas misérias, que publicamos cauterizadas, alteradas em conformidade com a técnica."

_graciliano ramos, meados de abril, 1935

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

O marinheiro

'— Abraça tua loucura antes que seja tarde demais — ele disse, e seus olhos tinham a cor do mar. Tinham a cor exata de quem por muito tempo, todas as horas, todos os dias de muitos meses e anos, olhou detidamente o mar, acompanhando o vôo das gaivotas, interrompendo-se em rochedos, nivelando-se ao movimento incessante das ondas. Verdes de um verde movediço entre o denso do vidro e o suave da hortelã recém-plantada, líquidos como água móvel, interior de gruta, rasos de pedras claras. Visíveis, os olhos vivos do marinheiro me olhavam molhados pela chuva, vértice de um novo movimento para onde eu convergia inteiro.
Para olhá-lo, também eu precisava de certa loucura. Essa, que me indicava. A mesma a que me tenho negado em susto, atravessando cotidianos de monótonos côncavos deliberados, movendo-me pelos labirintos coloridos desses interiores sempre previstos, embora absurdos. Não havia sol naquela tarde, nem cores caindo sobre os objetos. Eu não estava distraído nem tinha disfarce algum quando ele me olhou. Ele não tinha nenhum disfarce quando eu o olhei. Mas não devia me permitir escorregar naquele mergulho de peixes quem sabe vorazes, isso só compreendo agora, e com esforço, sete dias depois de sua partida, uma garrafa de vinho tinto, a chuva se foi, restaram o frio e a umidade que amolece papéis e vontades, aberta ao lado da janela escancarada para a noite enorme lá fora, onde ruge uma cidade estufada de rumores e procuras. Preciso dizer neste momento, embora talvez não caiba aqui. Ainda que me tenha isolado assim drástico, ainda que elabore dentro de mim e da casa pacientes, irrefutáveis justificativas para ter cerrado as portas ao de fora, o humano que afastei através dos vidros coloridos, esse humano dói, palpita, ofega, tem ritmos suarentos fora de mim.'

_caio f. abreu

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Triângulo das águas

'Inesperadamente pacífica, ou com o gosto de outra paz, antiga, o blues trazia uma vontade de deitar-se no chão, ao comprido, sobre almofadas, para olhar detidamente o teto, suas tênues rachaduras, rios num mapa, as cintilações dos anúncios luminosos através das vidraças fechadas, alguma coisa dura nos ombros se soltava, talvez acenderia um cigarro, se fumasse, apagaria as luzes, bebendo lento o vinho. [...]
Apanhou o cálice quase vazio junto ao sofá, e penetrou pelo corredor de paredes também brancas, tão estreito e alto que sentiu uma espécie de vertigem.'


_caio f. abreu in 'pela noite'

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Joaquim:

O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.

O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.

O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.

O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.

Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.

O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.

O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.

O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.

O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.

O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.

O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.

_joão cabral de melo neto in 'os três mal-amados'