sábado, 31 de outubro de 2009

'Tenhamos um mundo de homens e mulheres com dínamos entre as pernas, um mundo de fúria natural, de paixão, ação, drama, sonhos, loucura, um mundo que produza extâse e não peidos secos. Creio hoje mais do que nunca é preciso procurar um livro ainda que de uma só grande página: precisamos procurar fragmentos, lascas, unhas dos dedos dos pés, tudo quanto contenha minério, tudo quanto seja capaz de ressuscitar o corpo e a alma.'

_henry miller

sábado, 24 de outubro de 2009

"E, nesse mundo, ninguém precisa trocar amor por coisa alguma, porque ele brota sozinho entre os dedos da mão, e se alimenta do respirar, do contemplar o céu, do fechar os olhos na ventania e abrir os braços antes da chuva. Mesmo quando o outro vai embora, a gente não vai. A gente fica e faz um jardim, um banquinho cheio de almofadas coloridas e pede aos passarinhos não sujarem ali, porque aquele é o banquinho do nosso amor, do nosso grande amigo. Para que ele saiba que em qualquer tempo, em qualquer lugar, daqui a quantos anos, não sei, ele pode simplesmente voltar, sem mais explicações, para olhar o céu de mãos dadas. Eu não quero passar a minha existência pulando de pedra em pedra, tomando atalhos de relações humanas. Eu vou mergulhar com o meu amigo, ainda que eu tenha de ficar em silêncio."

_rita apoena


domingo, 18 de outubro de 2009

cartas de um sedutor

'era telúrico e único. sonhava. sonhava adeuses e sombras. sonhava deuses. era cruel porque desde sempre foi desesperado. encontrou um homem-anjo. para que vivessem juntos, na Terra, para sempre, cortou-lhe as asas. o outro matou-se, mergulhando nas águas. eu vivo até hoje. estou velho. às noites bebo muito e olho as estrelas. muitas vezes, escrevo. aí repenso aquele, o hálito de neve, a desesperança. deito-me. austero, sonho que semeio favas negras e asas sobre uma terra escura, às vezes madrepérola.'

_hilda hilst

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

feliz ano velho

"Não falamos de amor. É porque é difícil acreditar que eu tenha realmente amado aos dezenove anos de idade. Mas não sei, pra mim amor é aquela relação doida que se vê em filme americano da década de cinquenta. Ou não: pode ser a sensação gostosa que eu sentia quando estava com ela.'

_marcelo rubens paiva

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

lavoura arcaica

"Os olhos no teto, a nudez dentro do quarto; róseo, azul ou violáceo, o quarto é inviolável; o quarto é individual, é um mundo, quarto catedral, onde, nos intervalos da angústia, se colhe, de um áspero caule, na palma da mão, a rosa branca do desespero, pois entre os objetos que o quarto consagra estão primeiro os objetos do corpo; eu estava deitado no assoalho do meu quarto, numa velha pensão interiorana, quando meu irmão chegou pra me levar de volta; minha mão, pouco antes dinâmica e em dura disciplina, percorria vagarosa a pele molhada do meu corpo, as pontas dos meus dedos tocavam cheias de veneno a penugem incipiente do meu peito ainda quente; minha cabeça rolava entorpecida enquanto meus cabelos se deslocavam em grossas ondas sobre a curva úmida da fronte; deitei uma das faces contra o chão, mas meus olhos pouco apreenderam, sequer perderam a imobilidade ante o vôo fugaz dos cílios; o ruído das batidas na porta vinha macio, aconchegava-se despojado de sentido, o floco de paina insinuava-se entre as curvas sinuosas da orelha onde por instantes adormecia; e o ruído se repetindo, sempre macio e manso, não me perturbava a doce embriaguez, nem minha sonolência, nem o disperso e esparso torvelinho sem acolhimento; (...)"

_raduan nassar

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

terror & êxtase

"Nunca senti tanta pena de um homem, pela primeira vez senti tesão misturado com piedade, ele era lindo que nem... que nem o gatinho com a pata quebrada debaixo da chuva que achei aquela noite em Ipanema e levei no colo, e depois ficamos sentados debaixo da marquise, e ele miava e eu ninava assim: 'Você marcou bobeira xará, com tanta gente nesta puta cidade, foi cair logo nas mãos de uma gatinha de pata quebrada debaixo da chuva, igualzinha a você.' "


_josé carlos oliveira

sábado, 3 de outubro de 2009

Heloísa

"Somos uns animais diferentes dos outros, provavelmente inferiores aos outros, duma sensibilidade excessiva, duma vaidade imensa que nos afasta dos que não são doentes como nós. Mesmo os que são doentes, os degenerados que escrevem história fiada, nem sempre nos inspiram simpatia: é necessário que a doença que nos ataca atinja outros com igual intensidade para que vejamos nele um irmão e lhe mostremos as nossas chagas, isto é, os nossos manuscritos, as nossas misérias, que publicamos cauterizadas, alteradas em conformidade com a técnica."

_graciliano ramos, meados de abril, 1935

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

O marinheiro

'— Abraça tua loucura antes que seja tarde demais — ele disse, e seus olhos tinham a cor do mar. Tinham a cor exata de quem por muito tempo, todas as horas, todos os dias de muitos meses e anos, olhou detidamente o mar, acompanhando o vôo das gaivotas, interrompendo-se em rochedos, nivelando-se ao movimento incessante das ondas. Verdes de um verde movediço entre o denso do vidro e o suave da hortelã recém-plantada, líquidos como água móvel, interior de gruta, rasos de pedras claras. Visíveis, os olhos vivos do marinheiro me olhavam molhados pela chuva, vértice de um novo movimento para onde eu convergia inteiro.
Para olhá-lo, também eu precisava de certa loucura. Essa, que me indicava. A mesma a que me tenho negado em susto, atravessando cotidianos de monótonos côncavos deliberados, movendo-me pelos labirintos coloridos desses interiores sempre previstos, embora absurdos. Não havia sol naquela tarde, nem cores caindo sobre os objetos. Eu não estava distraído nem tinha disfarce algum quando ele me olhou. Ele não tinha nenhum disfarce quando eu o olhei. Mas não devia me permitir escorregar naquele mergulho de peixes quem sabe vorazes, isso só compreendo agora, e com esforço, sete dias depois de sua partida, uma garrafa de vinho tinto, a chuva se foi, restaram o frio e a umidade que amolece papéis e vontades, aberta ao lado da janela escancarada para a noite enorme lá fora, onde ruge uma cidade estufada de rumores e procuras. Preciso dizer neste momento, embora talvez não caiba aqui. Ainda que me tenha isolado assim drástico, ainda que elabore dentro de mim e da casa pacientes, irrefutáveis justificativas para ter cerrado as portas ao de fora, o humano que afastei através dos vidros coloridos, esse humano dói, palpita, ofega, tem ritmos suarentos fora de mim.'

_caio f. abreu